segunda-feira, 20 de junho de 2011

MÍSTICA: NASCIMENTO DE DEUS NO HOMEM
(Aspectos da doutrina espiritual do Beato Tito Brandsma)
Hein Blommenstijn

                Mística: interação entre Deus e o Homem
                Para Frei Tito Brandsma, mística sempre vem entrelaçada com humano. De um lado, o toque divino no homem, de outro, os fatores humanos colorindo e delineando o divino. Daí a dificuldade de separar e isolar os elementos, traçar os exatos limites do divino e do humano. O mais inteligente e prático, no caso, é descobrir o divino no humano, o caráter bilateral da mística.
                Para Frei Tito Brandsma (1929), o que existe na mística é uma interação Deus-Homem: descida de Deus, ascensão do Homem; iniciativa divina, receptividade e cooperação humanas.
                Para Frei Tito Brandsma (1937), o que acontece na mística é a união íntima, singular e tornada consciente da parte de Deus com a pessoa humana (elemento divino) e a tomada de consciência da parte do homem e sua união pessoal com Deus (elemento humano). A união mística é de iniciativa divina, mas ocorre na pessoa concreta: a elaboração é de Deus, mas a receptividade cada vez mais consciente é do homem; a origem do fato, da experiência e da realidade nova é Outra Realidade (cf. Dag Hammarsköld: “experiência que vem de fora”), mas a consciência e o entendimento dela dentro de si (experiência concreta) é do homem. A experiência mística é um momento teológico, que já inclui concretamente o momento psicológico ou experiencial (humano).
                Para Frei Tito Brandsma, na experiência mística há dois conceitos importantes: 1 – a receptividade da pessoa humana, 2 – a influência da experiência sobre a vida. A saber: trata-se de um acontecimento na realidade concreta do ser humano, portanto com uma configuração existencial, perceptível e comunicável, numa história colorida, fenômeno humano, com seu momento psicológico e seu resultado: a personalidade mística.
                Frei Tito (1929) escrevia que, onde Deus age, o divino é assumido no humano delineado e circunscrito. O divino entra em consonância com a tendência natural do homem: encontro da fraqueza com a força, da limitação com a maravilha da mística. Daí sua descrição da pessoa mística: nem herói, nem imaculado; antes, com suas limitações e vivendo por mediações. Vive tradições, influências, contextos, linguagens típicas e insuficientes. Inventa novas linguagens, artísticas e criativas, assimiláveis por outros homens, mas sujeitas aos mecanismos e processos culturais, sociais e psicológicos.
                Mística: limites e os fenômenos extraordinários
                Pra Frei Tito é questão menor. Mística como tal não envolve necessariamente fenômenos extraordinários (visões, milagres, etc.). São epifenômenos, reflexos da experiência mística, “instáveis e imperfeitos”, ligados às limitações do imperfeito ser humano.
                Não há como traçar limites rigorosos entre o divino e o humano na experiência mística. O imediato e repentino se mistura com o progressivo e gradual, a irrupção mística extraordinária com o ruído vago e cotidiano. Isto também é questão menor, para Frei Tito. Conhecedor e possuidor de profunda vida mística, não concordava com os que ficam ansiosos por absoluta distinção e clareza dos elementos, porque ele próprio conseguia ver o divino na provisoriedade e fragmentação humanas.
                Na mística não se pode ser extremista, quando se trata de analisar se alguém de fato viu ou ouviu Deus. O melhor mesmo é a cautela, escreve Frei Tito, já que Deus tem inúmeras formas de se comunicar.
                A natureza não dá saltos”... Na mística como na natureza há uma evolução natural progressiva. O humano sempre tem seu papel. Por mais sublime que seja a experiência mística, segundo Frei Tito, ela é psicogenética, isto é, comunicada natural ou sobrenaturalmente pela/em consonância com a psicologia do ser humano.
                Mística: a tensão entre o divino e o humano
                Deus se amolda à natureza concreta da pessoa humana, mas ao seu modo”, eis a tensão da vida mística, a condição para se falar dela. Experiência absolutamente original, uma tensão nunca resolvida  apenas por um dos lados. Por isso o critério preferido por Frei Tito para declarar a autenticidade da experiência mística, mais do que o confiável esforço desinteressado, é o da árvore que se conhece pelos seus frutos, a saber, o exercício do amor. Assim, a experiência será total, completa, prática e concreta.
                Frei Tito afirma, com os grandes místicos da Idade Média, que a experiência mística é algo cotidiano, inserida na vida natural de cada dia, abrangendo o homem todo, num processo de contínua encarnação, no qual a gratuidade da vida de Deus se torna realidade em carne e osso da vida humana. Portanto, nem abstração ou alienação, nem espiritualização ou sublimação indevida, nem fuga do mundo.
                Na visão de Frei Tito, a mística é um desabrochar da vida humana. A força de Deus dá continuidade às possibilidades humanas. A mística é vocação divina e inclinação humana. O homem é naturalmente místico! A mística é um olhar maravilhado sobre a nossa existência. Uma visão filosófica e metafísica ao modo de Eckhart, mas fundada no autoconhecimento, que afirma a dependência original de nossa existência: nem necessária, nem automática, nem gerada espontaneamente, mas uma real irrupção mística, algo que nos precede. Mais do que simples dedução filosófica, sabedoria de Deus comunicada ao homem, verdadeiramente uma experiência mística (cf. Dag Hammarskjöld, 1951: “A existência é algo que vai além de nós mesmos; poder-se-ia igualmente não existir”).
                Mística: olhar contemplativo e ação consequente
                O olhar maravilhado sobre nossa existência (mística), mais do que uma descoberta racional, possibilita um retorno à origem de nossa vida, um mergulho na insondável profundidade (origem), em que “a pessoa flui de Deus” (Andriessen).  É a experiência das pessoas simples, onde “a vida, que parece muito elevada, deve ser chamada de muito simples” (Frei Tito). Em texto muito bonito, Frei Tito prosseguia, afirmando a ação de Deus no mais profundo do homem, como sustento e guia. É lá que o homem se encontra com Deus. É lá o chão em que nossa vida se enraíza. Chão que se denomina “conhecimento de nossa união com Deus”, nossa pátria, Reino de Deus gratuitamente oferecido neste mundo. É lá o espaço de adoração, conversa, união com Deus. Nele nos perdemos, para reorganizar nossa vida segundo seu projeto. Ação transformadora que Ele mesmo opera em nós.
                O conceito natural de Deus, para Frei Tito como para Eckhart, não se atinge apenas pela inteligência, mas também pela contemplação de Deus e de sua ação em todas as coisas e situações humanas. Tudo depende de Deus e de sua ação. Em primeiro lugar, o próprio ser humano. O homem é o lugar por excelência de “reaprender a ver Deus e viver na sua presença: a isto se dá o nome de mística” (Frei Tito). Trata-se, portanto, mais do que de dedução ou conclusão intelectual, de uma experiência imediata de nossa origem, da conscientização sobre o núcleo mais profundo do nosso ser. Frei Tito recorre a um outro grande místico carmelita, Jean de Saint-Samson, para confirmar sua doutrina: “No mais íntimo do meu ser inflama-se a centelha, como potência maravilhosa aí colocada por Deus para conhece-lo, entende-lo e viver seu projeto”. De acordo com Frei Tito, a experiência de Deus no fundo do nosso ser torna-se consciência mística, ou seja, experiência imediata e superabundante da presença e ação de Deus na vida da pessoa humana concreta mergulhada na correnteza do Amor insondável. Experiência que dissipa o nevoeiro, mesmo que não o elimine de todo; que por iniciativa divina faz desabrochar e aperfeiçoar-se o que já estava em gérmen no íntimo do ser humano, inteiramente gratuito (“por nada”). Mesmo que sem êxtase, com certeza verdadeira vida mística!
                A contemplação mística do mais profundo do ser da pessoa humana leva ao engajamento prático e ao respeito pela dignidade inviolável da pessoa humana. Política e mística nunca são mundos separados! Se estiverem, a mística é falsa... Num discurso sobre o conceito de Deus, Frei Tito se expressa assim: “Essa habitação e ação de Deus em nós não deve ser apenas objeto de intuição, mas revelar-se em palavras e atos, e irradiar-se a toda a nossa vida”. Disso depende o restabelecimento da ordem social lesada, a vitória sobre o isolamento pessoal e a dependência relacional de cada pessoa em relação a Deus e, nele e por ele, em relação aos outros. Afinal, aí está uma comunhão fundamentada “na união mais íntima de Jesus com tudo o que existe”.
                Conclusão
                A mística de Frei Tito, conclui-se, é sempre o entrelaçamento do divino com o humano, encarnação da presença e ação de Deus nas profundezas da realidade humana concreta. O que vale dizer: Dachau = fruto da vida mística. Até ao fim, inclusive ao dar seu terço à enfermeira da injeção letal, mesmo como vítima fatal da violência — sua vida foi crer na possibilidade de paz e reconciliação entre os homens. Crer no valor indestrutível da vida foi o sinal de sua autenticidade de vida. Ciente de que o homem é uma vocação para Deus, foi sempre e plenamente fiel ao amor!

Texto fornecido por Frei Gabriel Haamberg e elaborado por Frei Martinho Cortez, ambos carmelitas.