segunda-feira, 5 de setembro de 2011

NOSSA MISSÃO: COMPROMETER-NOS A TESTEMUNHAR E ANUNCIAR UMA ESPIRITUALIDADE ENCARNADA NA REALIDADE COMO FONTE DE COMPROMISSO E DE SERVIÇO.

No Carmelo, os diversos elementos da espiritualidade cristã são vividos com matizes particulares que, por sua vez, devem encarnar-se em nossa realidade latino americana. Na formação dos discípulos missionários e no trabalho pastoral, nossa espiritualidade pode e deve dar contribuições significativas. O Documento de Aparecida nos apresenta desafios que põem em jogo nossa criatividade e compromisso como carisma na Igreja.
É importante que tenhamos presente as orientações que nos dá Aparecida para poder dar nossa contribuição como Carmelitas, para que nossos povos, em Jesus, tenham vida.
Ao dirigir um olhar para a realidade da America Latina e do Caribe, o Documento de Aparecida constata que existe, “como reação ao materialismo, uma busca de espiritualidade, de oração e de mística que expressa a fome e sede de Deus”1.
Sabemos que não pode existir um trabalho evangelizador que não tenha como ponto de partida uma experiência de Deus, uma aceitação vital da mensagem de Jesus Cristo e uma abertura à ação do Espírito, quer dizer, uma espiritualidade. Não se trata de transmitir uma doutrina ou uma série de ensinamentos, senão uma experiência profunda da Boa Nova. Por isso estão sempre unidas a espiritualidade, a pastoral e a teologia. O Documento de Aparecida, propõe, direta ou indiretamente, uma espiritualidade como compromisso com o seguimento de Jesus e fonte de ação missionária. De maneira especial dedica uma parte do capítulo sexto que explica o itinerário formativo dos discípulos missionários e o intitula Uma espiritualidade trinitária do encontro com Jesus Cristo (nos 240 – 275). Ainda, em outros muitos lugares alude-se à espiritualidade como origem e meta da ação evangelizadora.
Um conceito unitário da espiritualidade nos ajuda a evitar o perigo de entender a espiritualidade de forma dicotômica, como se tratasse de algo anterior à ação e separado da mesma. Isto converteria a espiritualidade em um espiritualismo desencarnado que, vivida a partir desta perspectiva, não diz nada ao homem e à mulher de hoje. É importante, por isso, partir do conceito de espiritualidade como um estilo ou forma de viver a vida cristã, que é vida “em Cristo” e “no Espírito”, que se acolhe pela fé, se expressa no amor e se vive na esperança. Falar de Espiritualidade não é, portanto, falar de uma parte da vida, senão de toda a vida. É referir-se a uma qualidade que o Espírito imprime em nós. É tratar também da ação sob o impulso do Espírito Santo. A referência primordial da espiritualidade cristã é Jesus; a conversão a ele e a seu seguimento.
Este modo de enfocar a espiritualidade responde melhor à revelação bíblica. Nela se tem uma visão unitária do ser humano, que vive sob a ação constante de um Deus presente e próximo, que o questiona e interpela em todas as circunstâncias. Podemos também afirmar que, deste modo, se compreende melhor a unidade da vida cristã em todas as épocas, culturas e situações existenciais. Ao mesmo tempo nos damos conta da necessidade de uma abertura à diversidade, fruto de circunstâncias diferentes que pedem singularidades e encarnações particulares. Não se vive a espiritualidade à margem da história, mas, dentro dela.
A espiritualidade cristã é uma espiritualidade inserida na Igreja e no mundo, portanto, participa das suas transformações. Está condicionada pelas diversas culturas que vão abrindo espaço na história. Está sujeita à modificações que se operam dentro do povo de Deus que peregrina no tempo como sacramento do Reino. O cristão deve viver sua espiritualidade hoje consciente da necessidade de aceitar as mediações culturais; tendo presentes as mudanças que vão se realizando na sociedade e na Igreja; à luz das grandes rupturas sócio-culturais e eclesiais que exigem uma nova identidade cristã. A vida cristã se encarna na história e nas pessoas concretas com sua cultura própria. Não se podem dissociar a fé e a história, o ser crente e o ser homem. Por isso, o estilo ou a forma de viver a vida cristã, quer dizer, a espiritualidade está influenciada pelas diferentes culturas. É preciso ter tudo isto presente para compreender a doutrina e as orientações espirituais do Documento de Aparecida.
Encontramos nele expressados, direta ou indiretamente, todos os elementos da espiritualidade cristã: o aspecto trinitário: experiência de Deus, seguimento de Jesus Cristo, abertura ao Espírito. O Aspecto teologal: a fé, a esperança e o amor.
Outros elementos fundamentais: a liturgia, a oração, a ascese, a devoção mariana, a dimensão apostólica.

1.      Uma espiritualidade trinitária –

O capítulo sexto em que se trata do itinerário formativo dos discípulos missionários, começa falando de uma espiritualidade trinitária do encontro com Jesus Cristo, afirmando que: “uma autêntica proposta de encontro com Jesus Cristo deve estabelecer-se sobre o sólido fundamento da Trindade-Amor. A experiência de um Deus uno e trino, que é unidade e comunhão inseparável, nos permite superar o egoísmo para encontrarmos plenamente no serviço ao outro. A experiência batismal é o ponto de início de toda espiritualidade cristã que se funda na Trindade”2.

2.      A experiência de Deus –

O Documento de Aparecida põe em relevo a necessidade que sente o povo de Deus de presbíteros – discípulos que tenham uma profunda experiência de Deus3 e, falando da dimensão espiritual na formação do cristão, afirma que esta deve fundar-se na “experiência de Deus, manifestado em Jesus, e que o conduz pelo Espírito através dos caminhos de profundo amadurecimento”4. Trata-se da experiência de Deus-Pai, “que nos atrai por meio da entrega eucarística de seu filho (Cf. Jo 6,44), dom de amor com o qual saiu ao encontro de seus filhos, para que, renovados pela força do Espírito, possamos chamá-lo de Pai.”5
Este Deus, nós o experimentamos na criação, que nos leva a louvá-los na beleza e fecundidade das terras latino-americanas e do Caribe. Também se o experimenta nas pessoas, famílias, povos e culturas do Continente”6, de maneira especial no rosto dos pobres, em cuja opção preferencial “está implícita a fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para nos enriquecer com sua pobreza”7. Junto a estas experiências de Deus na criação e nas pessoas, se experimenta a Deus na história, acompanhando os esforços por restaurar seu Reino8.

3.      O seguimento de Jesus Cristo

Apesar de que, como bem assinala José Comblin, a parte mais fraca do Documento é a Cristologia, por não levar em conta toda a limensão histórica da vida de Jesus e de seus ensinamentos, não faltam reflexões pertinentes sobre o que é e o que significa seu seguimento.
Inclusive há, aqui e ali, alguma referência implícita à reflexão cristológica latino- americana, como quando se afirma que “uma autêntica evangelização de nossos povos envolve assumir plenamente a radicalidade do amor cristão, que se concretiza no seguimento de Cristo na Cruz; no padecer por Cristo por causa da justiça,; no perdão e no amor aos inimigos”9.
Outro texto fala explicitamente de como, no seguimento de Jesus, “aprendemos e praticamos as bem-aventuranças do Reino, o estilo de vida do próprio Jesus Cristo: seu amor e filial obediência ao Pai, sua compaixão entranhável frente à dor humana, sua proximidade aos pobres e aos pequenos, sua fidelidade à missão encomendada, seu amor serviçal até a doação de sua vida. Hoje, contemplamos a Jesus Cristo tal como os Evangelhos nos transmitem para conhecermos o que Ele fez e para discernirmos o que nós devemos fazer nas atuais circunstâncias.
O seguimento de Jesus implica renovar em nossa vida a experiência que ele viveu em sua humanidade, trabalhar pelo que ele trabalhou e passar pelo que ele passou.
Jesus experimentou a Deus como Pai, aos demais como irmãos e irmãs e ao mundo como lugar de encontro com Deus e com os irmãos. Ele trabalhou pela libertação integral do ser humano e passou através da incompreensão, perseguição e morte que culminaram na Ressurreição.
Numa linha de um seguimento de Jesus em sua história, a partir da nossa história, Aparecida assinala entre outras coisas, que, diante de uma vida sem sentido, Ele nos revela o rosto de Deus que nos convida à comunhão com a Trindade11; diante da desesperança de um mundo sem Deus, que só vê na morte o término definitivo da existência, nos oferece a ressurreição, ante a idolatria dos bens terrenos, Jesus apresenta a vida em Deus como valor supremo e nos convida a segui-lo12. Diante do subjetivismo hedonista, Jesus propõe entregar a vida para ganhá-la13; “diante a exclusão, Jesus defende os direitos dos fracos e a vida digna de todo o ser humano”14.Não falta, também, na doutrina do Documento de Aparecida, o comprometimento ecológico no seguimento de Jesus. “Ante a natureza ameaçada, Jesus, que conhecia o cuidado do Pai pelas criaturas que Ele alimenta e embeleza (Cf. Lc. 12, 28), convoca-nos a cuidar da terra para que ofereça abrigo e sustento a todos os homens”.15
Viver a espiritualidade do seguimento de Jesus, à luz do Documento de Aparecida, exige entrar na dinâmica do Bom Samaritano, para aproximarmo-nos dos que sofrem; para gerar uma sociedade sem excluídos, acolhendo os pequenos e os pobres e buscando a libertação integral de todos.16

4.      Abertura ao Espírito

A vida cristã é uma vida “segundo o Espírito”. Em Aparecida encontramos, em muitas páginas, uma doutrina orientadora sobre a presença e a ação do Espírito na Igreja e em cada um de seus membros. Apresenta-o como “Espírito vivificador, alma e vida da Igreja[...] Ele que foi derramado em nossos corações, geme e intercede por nós, e com seus dons, nos fortalece em nosso caminho de discípulos e missionários”.17
O Documento nos recorda que o Espírito nos fala através dos “sinais dos tempos” e que nos identifica com Jesus – Caminho, abrindo-nos ao seu mistério de Salvação, para que sejamos filhos seus e irmãos uns dos outros; identifica-nos com Jesus – Verdade, ensinando-nos a renunciar as nossas mentiras e ambições pessoais; identifica-nos com Jesus – Vida, permitindo-nos abraçar o seu plano de amor e nos entregar para que outros tenham vida nele”.18
Como seguidores de Jesus devemos deixar-nos guiar pelo Espírito e “fazer nossa a paixão pelo Pai e pelo Reino: anunciar a Boa Nova aos pobres, curar os enfermos, consolar os tristes, libertar os cativos e anunciar a todos o ano da graça do Senhor”  (Cf. Lc. 4,18-19)19.
O primeiro fruto da presença da ação do Espírito é a comunhão entre os discípulos e missionários. Por isso, somos convidados por Ele e ajudados para viver em comunhão, a partir da sua presença em nós e na comunidade dos cristãos em Cristo20. O Espírito nos envia `a tarefa missionária21. O Espírito nos renova continuamente e nos dá possibilidade de dirigirmos a Deus como Pai; nos ajuda a compreender a Escritura, fortalece a nossa identidade de discípulos e desperta em nós a vontade de anunciar com audácia aos outros o que temos escutado e vivido22.
“Invocamos o Espírito Santo para podermos dar o testemunho de proximidade  afetuosa, escuta, humildade, solidariedade, compaixão, diálogo, reconciliação, compromisso com a justiça social e capacidade de compartilhar, como Jesus o fez”. Pede-nos fidelidade ao Espírito Santo que nos conduz à renovação eclesial, “que implica reformas espirituais, pastorais e também institucionais24”.
É preciso saber descobrir a presença do Espírito Santo na presença dos valores do Reino de Deus nas culturas, para fortificá-las e purificá-las; nos esforços das pessoas de boa vontade; nas pessoas e comunidades que testemunham o evangelho25. Com a força do Espírito enfrentam-se os desafios do momento atual.26

5.      A Fé

A fé bíblica tem um sentido de abertura a uma pessoa com confiança e segurança plenas.
Crer na Escritura é apoiar-se em algo sólido e estável; apoiar-se em Deus. A fé é um abrir-se ao Deus Vivo e Verdadeiro, ao Deus da aliança, fiel ás suas promessas. À luz desta fé, se faz a experiência de Deus, não fora da realidade, mas dentro dela: realidade histórica plena de contradições e de buscas; realidade política, social e econômica. A fé em sua dimensão social, leva a analisar a realidade à luz do plano de Deus sobre a humanidade, a anunciar este projeto divino, a denunciar a tudo o que se opõe a ele. Esta fé conduz a discernir as interpelações de Deus nos sinais dos tempos e a descobrir as situações de pecado social. Conduz igualmente ao compromisso por superar tudo o que contradiz a condição de filhos de Deus e de irmãos, que Cristo estabeleceu entre os seres humanos.
A volta ao conceito bíblico de fé faz com que a Fé não seja reduzida, como acontecia com freqüência, em acreditar nos dogmas.
Hoje a Fé é entendida como abertura confiante a Deus e disponibilidade para seguir seus caminhos; como visão contemplativa que descobre Deus presente na realidade e que se expressa no compromisso de amor aos irmãos/ãs. Aparecida confessa desde o princípio do Documento que deseja dar um novo impulso à evangelização, a fim de que estes povos continuem crescendo e amadurecendo em sua fé.
O Documento nos apresenta o significado de uma fé encarnada na realidade quando, ao descobrir o método ver, julgar e agir, diz que este método implica “contemplar a Deus com os olhos da fé, através da sua Palavra revelada e o contato vivificador dos Sacramentos, a fim de que, na vida cotidiana, vejamos a realidade que nos circunda à luz da sua providência, e a julguemos segundo Jesus Cristo, Caminho, Verdade e Vida, e atuemos  a partir da Igreja, Corpo místico de Cristo e Sacramento universal de Salvação, na propagação do Reino de Deus, que se semeia nesta terra e que frutifica plenamente no céu”28.
A fé nos ensina também que “Deus vive na cidade, em meio às suas alegrias, anelos e esperanças, como também em suas dores e sofrimentos. As sombras que marcam o cotidiano das cidades, como por exemplo: violência, pobreza, individualismo e exclusão, não podem impedir-nos que busquemos e contemplemos o Deus da vida também nos ambientes urbanos”29.
Aparecida reconhece como testemunhos da fé a muitos de seus membros que foram perseguidos e assassinados por seu empenho a favor dos mais pobres e sua luta pela dignidade de cada ser humano.30 A fé deve ser vivida com alegria, que leva a “proclamar o evangelho de Jesus Cristo e, nele, a boa nova da dignidade humana, da vida, da família, do trabalho, da ciência e da solidariedade com a criação”31. “A fé nos liberta do isolamento porque nos leva à comunhão”32. Jesus se faz presente em uma comunidade viva na fé e no amor fraterno33. Há que se viver a fé na centralidade do mistério pascal de Cristo através da Eucaristia34. A religiosidade popular expressa também a fé “porque reflete uma sede de Deus, que somente os pobres e simples podem conhecer”35.
A fé deve inculturar-se porque somente quando penetra no substrato cultural de um povo pode ser professada adequadamente, entendida e vivida36. A fé em Deus é compatível com a Ciência, portanto, devem ser valorizados os espaços de diálogo entre ambas.37 Diante dos desafios da nova evangelização, se faz mais urgente que nunca “uma coerência entre fé e vida em âmbito político, econômico e social”38.

6.      A esperança

A esperança cristã não pode reduzir-se à simples espera paciente e resignada da irrupção do definitivo em nossa história humana. O conceito bíblico de esperança ilumina a tensão entre o presente e o futuro, que será o definitivo. A redenção de Cristo, já realizada, tem ao mesmo tempo uma faceta futura que é objeto de esperança: a redenção se consumará com a ressurreição. À luz do Novo Testamento, a esperança cristã é feita de fé, paciência perseverante e ação, (Cf. Rom 5, 3 – 5) e se apóia na bondade e fidelidade de Deus manifestadas em Cristo, do qual nada nem ninguém pode nos separar (Rom 8, 38–39), e na presença do Espírito (Rom 8, 11–23). A esperança cristã arrasta também consigo o universo (Rom 8, 19–22).
A dimensão ativa da esperança se orienta para o progresso do ser humano e à sua libertação e, só através desta, para o progresso do mundo, da ciência e da técnica. Tudo deve estar voltado para a libertação integral da pessoa humana. A esperança do definitivo não deve enfraquecer, senão estimular a solicitude para transformar o mundo e a sociedade, porque isso interessa ao Reino de Deus, já misteriosamente presente na terra39. A esperança, em sua dimensão social, leva a descobrir contemplativamente as sementes de vida e de ressurreição nas coisas de cada dia, nas situações, nas pessoas, em si mesmo. Também a experiência da própria pobreza, das próprias limitações e da demora das mudanças, exige o exercício de uma esperança ativa, que vive a tensão da paciência perseverante.
O Documento de Aparecida apresenta a esperança cristã a partir de uma dupla perspectiva: por uma parte descobre os sinais de esperança e por outra, a coloca na linha do Vaticano II, que a associa ao compromisso de trabalhar pelo projeto de Deus, que começa neste mundo e se consumará quando chegarem os novos céus e a nova terra. Constata-se que junto com a fé existe em muitos batizados uma esperança contra toda a esperança que produz a alegria de viver ainda que em condições difíceis40, porque encontra Jesus como rocha, paz e vida41.
Entre os sinais de esperança que animam a espiritualidade na América Latina e no Caribe está a caridade de tantas pessoas anônimas em meio às injustiças e adversidades. Seu testemunho manifesta a proximidade do poder salvador e libertador do Reino de Deus “que nos acompanha na tribulação e que anima incessantemente nossa esperança em meio a todas as provações”42.
Na Igreja “casa e escola de comunhão” os discípulos “compartilham a mesma fé, esperança e amor no serviço da missão evangelizadora43 para iluminar e infundir alento e inspirar soluções adequadas aos problemas da existência”. “No coração e na vida de nossos povos pulsa um forte sentido de esperança, não obstante as condições de vida que parecem ofuscar toda esperança. Esta se experimenta e se alimenta no presente, graças aos dons e sinais de vida nova que compartilha; compromete-se na construção de um futuro de maior dignidade e justiça e aspira aos novos céus e nova terra que Deus nos prometeu em sua morada eterna”45. “Só assim o Continente da esperança pode chegar a tornar-se verdadeiramente o Continente do amor”46.